A caravela, os índios e a inocência (1992)
É muito bonito porque eles vêem os índios, e afinal um desses índios é trazido até o capitão, o Pedro Álvares Cabral... Eu fico imaginando aquele índio que está andando na praia e que é trazido para a caravela, um negócio que ele nunca viu antes, com uma gente com roupas que ele nunca viu, de uma cor completamente diferente, de outra raça, com umas roupas diferentes, com uma tecnologia diferente. Aquela caravela é uma novidade total.
O índio veio tranquilamente, entrou, e eles tiveram um diálogo sumário, uma troca de objetos, e o índio deitou-se no tombadilho e dormiu a noite toda. Essa coisa me impressiona demais. A primeira vez que eu li isso eu fiquei com uma vontade de chorar...
Eu fico imaginando a fé profunda de uma pessoa dessas, que não temeu dormir ali, entre desconhecidos, de uma cultura que deveria ser muito impressionante, mas que ele acolheu com uma tranquilidade... Como se chegasse um disco voador aqui e você fosse dormir lá, sem saber o que é, sem entender a língua deles... Troca dois negocinhos e dorme lá dentro, depois sai, volta pra praia, vem pra casa... É incrível isso.
A inocência me encanta, sim. Nessa cena da carta de Pero Vaz o assunto da inocência é maravilhoso, porque a descrição da nudez é muito bonita. A percepção de que era uma sensação de pureza, no texto de Pero Vaz aparece muito claramente. E, justamente, eles estavam trazendo uma espécie de grandeza, que é a grandeza da Europa, que de uma certa forma implica na perda da inocência.
Tem uma música minha, "Santa Clara Padroeira da Televisão", em que, rezando para Santa Clara para proteger a televisão, eu digo assim: "Possa o vídeo ser a cobra de outro Éden, porque a queda é uma conquista". Eu acho que a perda do paraíso é uma conquista, a queda, a Europa e a perda da inocência é uma conquista. Mas não deixa de haver uma nostalgia do que foi perdido e uma paixão pelo momento da inocência. Isso é uma ambição maior da própria queda, é um querer ir em frente, esse amar a inocência. É por isso que eu a amo também. É meio dialético isso.
A imagem desse índio que dormiu na caravela de Pedro Álvares é uma coisa de uma inocência tranquila tão grande, uma falta de malícia ou de desconfiança, é de uma fé, de uma confiança básica tão grande, que comove. Eu não posso imaginar que se você estiver dentro da cultura de uma nação indígena brasileira, você não vá também ali dentro encontrar algumas manifestações do sentimento de perda ou de queda de algum paraíso. Eu acho que a nostalgia de alguma inocência total acompanha o homem desde que ele é homem em todas as formas de ser homem que ele tem encontrado. Eu acho, mas eu não sou antropólogo. nem psicólogo.
Caetano Veloso.
Folha de S.Paulo, 9 de agosto de 1992.