Artifício acima da vulgaridade (1991)

Regina é a alegria de atuar. Esse prazer de falar, mover-se, ser o centro das atenções - o grande prazer de estar presente - é tão natural nela que fazer teatro parece fácil. O encontro de Regina com Hamilton Vaz Pereira nos anos 70 resultou numa série de golpes violentos contra a idéia de que a afetação de dificuldades confere importância ao teatro e à vida. Não é fácil. O grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, criado e orientado por Hamilton e Regina, teve seu momento de maior intensidade em Trate-me Leão, e seu momento de maior perfeição em Aquela coisa toda. Eles tinham encontrado meios de dizer trechos de Baudelaire e Tchecov e também de falar da complexidade da história-sendo-vivida (mundo e Brasil), sem perder o tom coloquial de gente da sua geração na sua cidade. A incapacidade de reconhecer a sofisticação necessária para atingir esse despojamento levou a crítica a desvalorizar a experiência, e os colegas e o público a baratearem suas conquistas em "besteirol". Agora mesmo, referindo-se a Notícias silenciosas - a outra peça de Hamilton atualmente em cartaz -, uma comentarista disse que Hamilton acha sequestros, Aids, atentados etc. coisas muito engraçadas. Como Notícias silenciosas é uma litania, o público, por sua vez, frustra-se porque está sempre esperando a "hora de rir". É o público-besteirol: sabemos se estamos gostando da peça pela quantidade e intensidade das risadas. Uma aula da Escola de Bufões: para entender melhor esta Nardja recomenda-se ao espectador as Notícias silenciosas.

Nardja Zulpério marca a volta da colaboração de Regina com Hamilton sobre um palco. Numa época de esvaziamento da espontaneidade e em que altas formalizações como as de Gerald Thomas justamente atraem nossa atenção, eles apresentam o amadurecimento de um estilo que quase humilha todos os outros esforços pela exuberância, pela vitalidade de poder dizer Nietzsche como se fosse uma versão facilitada e, no entanto, nada perder da densidade de Nietzsche, de elevar o artifício comumente rasteiro do número de platéia não apenas acima da vulgaridade, mas ao sublime. Porque Hamilton é um pouco como Godard na criação de suas antipeças ou parapeças ou quase-peças: joga ali tudo que vê, que ouve, que lê, e tudo fui. E Regina, bem, Regina é o que ela é: um dos maiores artistas do Brasil.

Caetano Veloso.
Jornal do Brasil, 14 de julho de 1991.

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