Rocco e seus irmãos (1961)
Quase morro de alegria, Wanderlino, quando recebi o seu cartão de Natal picassíssimo. Lástima que  o endereço que você pôs não estava muito certo e para que o próprio me chegasse às mãos foi necessário requisitar o 2º Exército, o balé do  Carlos  Machado,  Lili Niágara (depois eu conto),  Coccinelle  e  seu corpo de homossexuais, a junta médica da Polícia Militar e o corpo de bombeiros. E chegou tão cedo que tive de fazer pra você uma carta agradecendo demais, envergonhado que ficava de passar um cartão de Natal no Carnaval. O que quer dizer, festejar o nascimento de Cristo às vésperas da sua morte.  Da sua antimorte mal morrida, que tanto encantou os místicos e deu trabalho aos escolásticos.
O que não interessa pois (você está entendendo a minha letra?)  Rocco está aqui e é, desde já, a coisa mais bela de sempre. Rocco Barone é um italiano, irmão, belo e puro. É um bom. Bom Rocco. É a própria ternura de olhos verdes e cabelos lisos. É filho de Visconti encarnado em Delon, Alain Delon.  Que para interpretar o mais belo personagem da história do cinema teria que ser realmente a mais bela cara de homem que já surgiu em qualquer tela.
'Rocco e seus Irmãos', 'Rocco e I Suoi Fratelli', é o filme mais  lindo que está no Guarani esta  semana. E diante de mim quatro vezes e para sempre. É realmente uma lástima, meu irmão, que você não esteja aqui para vê-lo. Pense numa grande tragédia fraternal,  pense na beleza, pense na Bíblia,  pense em Dostoiévski, pense no  homem e em três horas de projeção, Rocco. Sinceramente (e ilegível de caneta) 'Rocco e I Suoi Fratelli' é o maior filme moderno,  certamente ao lado de 'Hiroshima' e talvez, de  'L' Aventura',  de Antonioni.
Me perdoe, fui obrigado a lhe dar o meu porrezinho  costumeiro comentando cinema.  É que 'Rocco'  é uma exigência. E também  eu estou com uma vontade louca de encontrar/ conversar com você e a turma toda. Morro de saudade.  (...) 'Europa de Notte' não é um filme, Henry Salvador é um cantor. Lili Niágara é uma mulher  e Domenico Modugno é ótimo. Mas, bom mesmo é João Gilberto.  Comprei o último LP do dito e descobri: a) que ele não só é o maior cantor, mas também um dos maiores artistas do Brasil no momento; b) que cada faixa de seu disco é uma obra e é a obra como está, intransponível; c) que ele redescobre Caymmi, ele lhe empresta maior riqueza; d) que Jobim e Vinícius são. Não tenho dúvida de que eu, Caetano, soteropolitanissimamente, mando um milhão e meio de abraços para você.
Caetano Veloso, 14 de janeiro de 1961.
Carta enviada ao amigo Wanderlino Nogueira Neto.
Publicada na Folha de S.Paulo em 9 de agosto de 1992.