Todas as perguntas do mundo (1992)

Conheci Torquato na Bahia. Ele foi uma das muitas coisas marcantes para toda a vida que Duda Machado, poeta, me apresentou. Álvaro Guimarães, que está sempre na raiz primeira de tudo o que se desdobrou de forma significativa para mim, me apresentou a Duda, por sua vez. A ciranda das amizades é fascinante para mim; sou dos que consideram a amizade uma instância superior da experiência humana. É desse ponto de vista que a lembrança de Torquato por vezes toma conta da minha cabeça; é por isso que eu chorei muito, quando afinal chorei, a saudade de Torquato. A poesia do poeta, do letrista e do jornalista está sendo louvada e, louvando o que bem merece, estamos fazendo o que devemos fazer. Quanto a isso, fica em nós a frustração pela não continuidade de uma obra que nos agradava, interessava e motivava. Que outras letras nos reservaria sua delicadeza de dicção, que o levava a escrever os textos mais cantáveis que melhor se davam impressos em papel?; que lutas seriam enfrentadas a um tempo com temeridade e sutileza nas páginas de que jornal?; que livros, que livro escreveria ele finalmente - o livro que ele planejou, esperou, adiou? Um livro insuspeitado? É nosso luto não saber. Mas temos o que ele deixou pra cantar, ler, interpretar. O luto maior é o da impossibilidade total de ter o amigo e seus gestos, a intimidade de sua sensibilidade, tudo o que era fonte de tanta poesia. Temos as lembranças, a lembrança.

Desde quando nosso conhecimento começou, animado por um mútuo fascínio, passando pelos anos de convivência íntima (nos víamos praticamente todos os dias) antes do exílio, até a última vez em que o vi, em minha casa em Salvador (a mesma cidade onde o vi pela primeira vez), não há em minha memória um só momento de Torquato que não seja de doçura e mansidão. Antes de minha prisão em 68, já não tínhamos mais aquela convivência cotidiana e durante os anos de exílio naturalmente não o pude ver de perto, saber como ele estava. As más notícias começaram a me chegar quando eu já estava de volta, na Bahia. Não demoraram muito a se resumirem numa única notícia que fechava de vez o caminho das respostas possíveis. As perguntas: como seria uma continuação da nossa amizade? Em que termos a retomaríamos? Que papel teria ela no desenrolar das minhas relações? Como estaria Torquato hoje, que aspecto ganharia com a idade, como sorriria, com quem andaria, se aquela tivesse sido apenas mais uma tentativa de olhar a morte de perto para poder continuar a viver?

Caetano Veloso.
Jornal O Globo, 17 de novembro de 1992.

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