Vamos parar no sinal vermelho (1992)

Os arrastões no Rio e os acontecimentos na Febem de São Paulo são manifestações da mesma geração que foi às ruas de cara pintada. E me impressiona muito essa coincidência de jovens da mesma geração, de classes tão diferentes, se manifestando num curto período de tempo, pois mostra que a sociedade brasileira está passando por uma transformação rápida. Pode ser que cheguemos a alguma coisa boa - eu sou basicamente um otimista - mas pode ser que não consigamos nada. A situação mundial é muito complicada, e a situação brasileira é mais difícil do que a mundial. Na minha visão de artista - eu sou sobretudo um sujeito que toca músicas, compõe, e na minha geração os artistas se sentiram mais ou menos responsáveis pela vida em sociedade, pela política enfim, e eu também senti, e me interessei - no meu esboço de pensamento político, que eu não me furto de revelar (me sinto até com a responsabilidade de apresentar alguma visão das coisas públicas), eu acho que essa transformação pela qual o Brasil está passando agora talvez tenha que ser mesmo profunda, porque muitas coisas estão vindo à tona de uma maneira que era difícil de prever. Tanto o impeachment quanto os desdobramentos que ele vem tendo não pareciam previsíveis, sobretudo no exterior. Eu me lembro que estava em Nova York e li um artigo, no The New York Times, que de certa forma desrespeitava o Brasil. Eles acreditavam que tudo era apenas mais uma ameaça à democracia, ou seja, uma confusão brasileira, latino-americana, que nos tiraria de novo da democracia, quando na verdade foi tudo conduzido dentro da mais estrita formalidade democrática - e assim continua, e esperemos que também seja assim com o massacre da Casa de Detenção, e com a CPI da Vasp.

Eu não aceito o absurdo dessa atitude policialesca que cresce em meio à sociedade assustada, essa idéia de que no Rio alguns grupos da Zona Sul devem se transformar em milícias paramilitares, ou privadas, ou espontâneas, contra os banhistas que vêm da Zona Norte e podem atacar. Na verdade, quando começaram os arrastões, no verão passado, eram realizados por menores das favelas da Zona Sul, que não precisam tomar ônibus para ir para a praia. Foi de Brizola, em sua primeira gestão como governador, a decisão, aconselhada por Jaime Lerner - um sujeito que eu admiro incrivelmente, meu político favorito no Brasil - de criar linhas de ônibus ligando a Zona Norte à Zona Sul, o que eu considero muito saudável porque o Rio sempre teve uma espécie de apartheid. Eu me lembro que, no final dos anos 70, eu fazia um show no Cine-Teatro de Madureira, que durou um mês inteiro, e, morando no Jardim Botânico, as pessoas que eu encontrava no Baixo Leblon, ou na praia, perguntavam: "Quando é que você vai fazer um show no Rio?" Mas eu estou fazendo show no Rio, eu dizia. "Mas onde?" Em Madureira. "Ah, pô, eu tô falando aqui, no Rio". É apartheid, sempre houve; era mais cultural do que meramente econômico, mas também tinha uma base econômica que agora, com os arrastões, ficou bem nítida. Essa tendência de que a reação aos arrastões deve ser a Zona Sul se armar, e até o Cesar Maia, na campanha, dizer que chamaria o Exército para tomar conta, é uma loucura. Que idéia é essa? Vai virar o quê? Colônia inglesa na África, pra no bairro dos brancos não passar preto senão leva tiro? Eu acho horrível! É África do Sul? Eu moro no Leblon, mas eu sou mulato, eu sou baiano. Uma vez eu vi escrito, e já há muito tempo, vários anos atrás, numa placa de cimento no Leblon: "Fora suburbanos!" Puro apartheid.

Eu penso que também os assaltos, e toda essa onda de violência que é crescente no mundo, são sinais de um grande problema global de superpopulação, dificuldade de distribuição de renda, de alimentos, de bens básicos de subsistência. É um problema gravíssimo que deve ser enfrentado em escala global, e no Brasil precisa ser encarado com muita coragem, muita lucidez, e todo mundo deve colaborar para isso. A pior coisa que você pode fazer é ir morar num prédio que parece uma prisão em São Conrado, ou botar uma carabina na entrada de sua rua, ou as pessoas irem com um porrete pra praia para dar porrada em garoto crioulo de 15, 16 anos, ou 14, ou 21. Essa decisão é sinistra. Na verdade, isso revela que todas essas questões, que sempre foram sérias - como a do próprio apartheid não assumido no Brasil - estão vindo à tona numa velocidade muito grande. Então eu gosto de pensar nos arrastões em conjunto com as passeatas dos garotos que exigiam o impeachment do Collor. Acho que é parte da exigência de modernização que essa geração faz nas ruas, exigência de respeito, de cidadania. O que os meninos da Febem fizeram também é parte disso. Eu leio assim. Para mim, esteticamente, isso forma uma unidade, é um organismo só. Este é o meu sentimento.

E o que eu estou falando aqui não é desrespeito à idéia de ação policial. Ao contrário: eu acho que a ação da polícia deve ser dignificada, exigente, limitada, precisa. Mas tudo isso exige um amadurecimento da noção de cidadania. O policial deve ganhar melhor, ser melhor orientado, e o respeito pelas funções que as pessoas exercem na cidade deve ser melhor observado. Eu penso que os motoristas têm de parar no sinal vermelho. Como é que você pode levar um porrete pra dar cacetada na cabeça de um crioulo de 15 anos se você nem pára no sinal vermelho? Você tem carro, que seu pai lhe dá, e não pára no sinal, põe a vida de famílias em perigo! Acho que um rapaz que tem um automóvel - um cara da alta classe média, da burguesia brasileira - e, por avançar um sinal, destrói a vida de algumas pessoas, é nitidamente um criminoso de muito pior categoria do que um estuprador, está muito abaixo, na minha visão moral e ética, de um estuprador. Porque ele não tem sequer uma só justificativa para o crime hediondo que pratica impunemente, como se fosse assim, sem importância - ele é o sabido, ele é legal, ele atravessa sinal vermelho. A burguesia, esse pessoal que tem carro no Brasil, não pára no sinal vermelho e quer sair com porrete pra matar preto na praia? Porque preto rouba relógio? Os roubos nem apareceram. O arrastão na TV Globo era um épico, e eles repetiram muitas vezes as imagens, dá muita audiência... Era muito bonito até, era bonito mesmo, hollywoodiano. Era bíblico, muito bonito, isso é inegável. Mas nenhuma senhora de Ipanema levou um beliscão ou uma porrada, ninguém deu queixa de roubo em nenhuma delegacia. Então o que significa essa atitude de Zona Sul? É guerra? Guerra informal a despeito das autoridades? Eu não aceito isso. Não é isso que eu estou vivendo. Morando no Leblon, não é isso que eu vivo, não é isso que estão vivendo os meus filhos - nem o de 19 anos, nem o de nove meses. Eu não admito isso, está errado. E pra começar vamos parar no sinal vermelho.

Caetano Veloso.

Entrevista a Ronnie Von no programa Sinal de Vida, Rede Record de Televisão, novembro de 1992. Publicado no Jornal Rio Capital em dezembro do mesmo ano.

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