Vendo canções (1984)
Fellini gosta de declarar o desprezo que dedica à televisão, "um eletrodoméstico". Odiaria ver seus filmes andando pra frente e pra trás, numa cópia em cassete ao gosto do espectador que aperta os botões. Filmes que foram feitos para a solenidade de teatro das salas de projeção. De fato, a televisão é pouco mais que uma geladeira. Mas o próprio cinema é, antes de tudo, indústria de diversão para as massas. Essa situação de dúbia respeitabilidade permite ao olhar post-pop flagrar o kitsch no chic de Bergman e o chic no kitsch (visual, literário, filosófico) de Fellini.
Sem dúvida, muito do encanto felliniano vem da relação ora ingênua ora descarada com a evidência dessa situação. Kubrick fala contra a atitude de vanguarda e olha com desconfiança para a mania do novo em toda a arte moderna. Realiza os filmes mais radicalmente experimentais, guardando o jeito do cinema de produção hollywoodiano. O qual merece de Godard (instalado num ambiente cultural muito mais refinado) sutis referências e comentários. O fato é que as tentativas de vanguarda (Lang, Clair ou Buñuel) foram abandonadas pelo modo de ser do cinema na história. Não falo aqui de conquistas e avanços como os de Griffith e sobretudo, Eisenstein, que foram incorporados pelo seu futuro, mas daqueles ensaios de transplantar para os fotogramas os ismos das vanguardas do início do século.
Glauber começou "concretista", mas o peso da sua obra reside no tom de luta heróica (Conselheiro e Corisco) pela implantação num país sub-sofisticado do 3° mundo, de uma indústria cinematográfica que servisse à reflexão e à ação sobre a realidade desse país, pondo em questão todas as contradições presentes, inclusive a criança dessa mesma indústria cinematográfica. Pode-se dizer que ele deu a vida por isso. Julio Bressane é quem afinal se revela mais próximo do "Pátio" do que de "Deus e o Diabo", enquanto Sganzerla (a meu ver o maior talento propriamente cinematográfico surgido dessa empreitada brasileira) permaneceu na posição guerreira ("Terra em Transe"), como se estivesse sempre refilmando "Deus e o Diabo" através de um filtro godardiano.
Vi na artificialidade deliberada de encenação de "Querelle" (que é uma ostentação da atitude vanguardista) uma curiosa semelhança com os comerciais de televisão. Mick Jagger me disse em Nova York que, pra ele, rock é algo assim como um filme classe B. David Bowie quer tomar o rock como uma forma de arte fina, "as novas telas onde podemos pintar as novas coisas". Nenhum dos dois me convence, mas o assunto me interessa. De Jagger pode-se dizer que ele é ao mesmo tempo um Andy Warhol e uma lata de Campbell's. Décio Pignatari, na época da explosão dos Beatles, falou em "produssumo". Hoje Merquior deplora a escalada "contracultural" que levou às ruas os temas e os estilos da vanguarda do início do século. E o próprio Décio dá sinais de alerta para que cada um ocupe seu devido lugar. Fora o caso brasileiro da TV Record (Sampa) não tenho notícia de nenhuma emissora de televisão, em todo o mundo, que tenha feito da música "popular" o centro do seu interesse. O surgimento da MTV (Music Television), um canal novaiorquino que apresenta exclusivamente números musicais 24 horas por dia, me faz pensar estas coisas que anoto às pressas e tento "montar" ou convidar quem me leia a fazê-lo na sua cabeça. Os números musicais da MTV são filmes que duram o tempo das canções e lhes servem de anúncio e ilustração ou comentário. Isso repercutiu na indústria fonográfica e já começa a influenciar a própria obra dos compositores e grupos.
Podem ser vistos no "Fantástico" alguns desses filmes e no Brasil já se produzem similares. São o casamento do rock ("filme B") com a televisão ("eletrodoméstico"). Os filmusicais de hoje. Uma nova arte? Antônio Cícero gosta da atitude de Bowie que encara os espetáculos de rock como arte de vanguarda, enquanto Jagger (cuja arte Cícero e eu sabemos ser muito superior à de Bowie) diz, "it's only rock'n roll". Dois "vídeo-clips", produzidos para a MTV (os quais aliás não foram lançados comercialmente), foram comprados pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque para o seu acervo. O fato de esses filmecos serem curtos (lembre-se que tanto "Citizen Kane" quanto "O Rei do Baralho" têm a mesma duração dos filmes convencionais), de serem produzidos como comerciais e, sobretudo, de terem como base gravações feitas em estúdios sofisticados - tudo isso faz com que eles estejam o mais longe possível dos filmes "underground" de Warhol (que são propositadamente amadorísticos). A maioria deles tem é o sabor da loucura modernista mais perto do "Entr act" e do "Chien Andalou".
Predomina um surradíssimo surrealismo (muito Magritte demais) que, no entanto, muitas vezes se mostra encantador. Mas também expressionismo (o clip para a chatíssima "Radio Ga Ga" do Queen é um lindo aproveitamento de "Metrópolis" de Lang) e cubismo e hiperrealismo e realismo mágico e formalismos frios a op. Os melhores "vídeo-clips" brasileiros ainda são as aberturas de novelas ("Dancing Days"!!!) e o que Décio disse sobre estas num artigo poder-se-ia aplicar a toda a produção da MTV. Talvez apenas não se devesse falar em "pop": pop é o ato de realizar "vídeo clips e não o estilo que vai se encontrar dentro deles. Há pop em Godard e Sganzerla. Conversando outro dia com José Agrippino de Paula sobre a incrível atualidade do teatro que ele produziu em 68, Sampa, ("Tarzan 3° Mundo" ou "O Mustang Hibernado"), ouvi dele o comentário - "É Rock Theatre. Eu gosto. Isso seria bom hoje era pra televisão". Rock Television. É curioso e estimulante que algo assim apareça exatamente quando Levy Straus declara que Picasso não é um bom pintor e que a arte moderna representou a perda de toda uma técnica e toda uma cultura. Estamos vivendo na prática, pondo em questão, tanto a discussão sobre a cultura de massas quanto sobre a validade das vanguardas do começo do século 20. Quanto a Zé Agrippino, é preciso repetir que seu filme "Hitler 3° Mundo", de 1968, é o mais radical e mais extraordinário ensaio de quantos foram feitos no Brasil de um cinema marginal ou alternativo.
Caetano Veloso.
Folha de S.Paulo, 16 de junho de 1984.
Inicialmente publicado no jornal "Cinema Livre" da Bahia.