Depois do colonialismo mental (2018)
O pensamento de Roberto Mangabeira me fascinou, isso já nos anos 1980, porque vi nele um modo insólito de expressar-se o Brasil e a esquerda. A partir de um artigo seu que li na imprensa, em que ele, então brizolista como eu, analisava a diferença entre a política ligada ao trabalho organizado, nascida do sindicalismo desenvolvido nas regiões mais ricas do país, e a mirada mais ampla, desafiadora, na direção das maiorias desorganizadas do povo brasileiro, procurei primeiro acompanhar seus textos, onde os encontrasse, e logo tentar chamar a atenção de outros leitores para eles. Eu o mencionava nas entrevistas que dava. Por mais de ano vi tais menções serem cortadas de suas transcrições impressas. A originalidade do conteúdo do que Mangabeira dizia mostrou ter mais força sobre mim do que as razões esboçadas pelos que o rejeitavam. Neste livro que reúne artigos por ele publicados ao longo dos últimos anos, pessoas interessadas em questões políticas, nas possibilidades do Brasil - ou mesmo nos problemas básicos da humanidade - encontrarão desafios mentais fecundos.
O Brasil e a esquerda. Mangabeira me pareceu encarar esses dois temas de uma maneira desvencilhada das fórmulas mistificadoras que minhas responsabilidades lógicas e morais me exigiam que rechaçasse. Numa das primeiras vezes em que conversei com Mangabeira, ele me contou que o Brasil cresceu a seus olhos, como alvo de interesse e paixão, a partir da participação, ao lado de seu avô Otávio, que foi governador da Bahia, nos festejos do 2 de Julho. Eu próprio aprendi a amar o Brasil como ideia, isto é, como história e projeto, quando, talvez mesmo antes de Mangabeira nascer, percebi com que seriedade meu pai supervisionava nossa divertida tarefa de cortar papel crepon verde e amarelo para enfeitar as sacadas do nosso sobrado para o desfile da Cabocla. O 2 de Julho, data da Independência na Bahia (nesse dia, em 1823, as lutas que se seguiram à proclamação do 7 de setembro de 22 tiveram fim em Pirajá, na região de Salvador, com a vitória dos independentistas), sempre foi festejado na capital baiana com a procissão, aberta por bandas escolares, das imagens de um casal de indígenas. Na mariana Santo Amaro, cidade onde nasci e cresci, esse era o dia da Cabocla: apenas a imagem feminina de uma nativa representava a libertação do jugo da colônia. As bandeirolas e guirlandas verde-e-amarelas, assim como os Caboclos e a Cabocla, podem ser vistos ainda hoje, a cada ano, nas duas cidades. A vitalidade a que se refere Mangabeira talvez tenha nascido da visão disso. Não lhe passarão, no entanto, despercebidos, os popularíssimos balizadores de atitude ostensivamente gay dos desfiles soteropolitanos atuais - assim como não lhe escapam as mensagens e possíveis consequências do crescente número de evangélicos na população brasileira. As propostas - quase receitas - de organização da economia, de solução da estrutura política, de entendimento do papel da justiça que se encontram neste livro vêm, em boa parte, da colisão da mente exigentemente racional do autor com a exuberância da festa de 2 de Julho, que ele reencontra em sucessivas épocas e instâncias diferentes.
A esquerda, a que sempre me senti ligado, tornou-se um problema para mim desde que meu pai, na minha infância, como que me recrutou para ela, sem deixar de apresentar a crítica e insinuar a desconfiança que os regimes de culto à personalidade e partido único sempre fizeram por merecer. Como tantos que foram jovens nos anos 1960, busquei e busco o que então chamávamos de "nova esquerda". Quando li, num livro de ensaios de Mangabeira, a clara recusa da ideia marxista de uma fatal sucessão de sistemas fechados como interpretação da História e como modo exclusivo de se projetar o futuro, senti o entusiasmo de quem encontra uma inteligência corajosa o bastante para enfrentar as verdadeiras dificuldades da vida humana. Líderes bravos e honestos dos nossos movimentos socialistas revolucionários entraram em depressão quando Khrushchev abriu a caixa preta do stalinismo. A dissolução da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, décadas depois, pareceram trazer a inevitabilidade do modelo de capitalismo liberal que conhecemos. Amo a vida: não quero vê-la desacreditada. Mas nada é menos merecedor de ser chamado de vida do que o congelamento de arranjos dados. Quando filósofos pós-tudo exibem retrato de Stalin na sala - ou quando Lina Bardi, adorada figura do meu tempo de juventude, confessa-se stalinista inabalável mesmo em 1990 - sinto uma pequena excitação, quase alegria, diante da teimosia que, um tanto cômica, se apresenta como um traço de vitalidade em meio a uma sensatez glacial. Mas são os aspectos terríveis das experiências de ditadura do proletariado que se impõem sobre mim. Pois bem: Mangabeira me surge quando eu já me dizia liberal, mesmo em tom misto de desaforo e interrogação. Em contato com seus escritos, vejo renascer a atitude anti-conservadora na força do compromisso com o engrandecimento da vida de todos os homens. Não da solução artificiosa que uma revolução traria pela imposição de uma igualdade medíocre. Mas pela obstinação no movimento em direção à divinização possível da existência humana. O esforço que ele faz para diferenciar seu projeto de uma mera humanização dos esquemas injustos traz de volta o pragmatismo numa versão desacorrentada, o reconhecimento da dimensão religiosa (o que liberta os projetos de justiça social de seus parentescos com a estrutura das religiões organizadas - e o faz com mais segurança do que os esgares anti-religiosos jamais conseguiram) e o ensinamento de que devemos produzir para ter esperança em vez de depender de uma esperança mágica para tornamo-nos capazes de produzir - todos esses aspectos de sua trilha explicam a percepção do liberalismo junto ao socialismo e à democracia como gritos igualmente deflagradores da revolução que temos de reaprender a viver.
Uma vez respondi à pergunta de uma revista com as seguintes palavras: "O Brasil vai dar certo porque eu quero". Houve muitos que viram aí arrogância ou mero slogan voluntarista. Quando li Mangabeira pensei que o que vale no que eu então declarei surgia ali como que explicado. Grande parte das pessoas que conheço pessoalmente ou apenas através de manifestações na imprensa também fala em voluntarismo e arrogância quando se refere a Mangabeira. Já eu não vejo em sua ambição sistemática uma nova prisão como poderiam ter sido para mim o marxismo, o liberalismo, a psicanálise ou uma religião dogmática. Numa aparição no programa televisivo Esquenta, protagonizado por e voltado para gente do povo desorganizado do Brasil, Mangabeira recebeu dos participantes (sambistas, funkeiros, youtubers populares) uma acolhida positiva e direta, sem dificuldades com suas ideias ou seu sotaque americano: o grande compositor Arlindo Cruz resumiu com entusiasmo: "Gostei desse professor". É assim que quero me referir a ele aqui neste prefácio: como um cantor popular que percebe instintivamente a beleza do encontro daquilo que ele chama de nossa vitalidade com sua capacidade sistemática. Que tenhamos amadurecido o suficiente para acolher - em vez de rejeitar por preguiça - o que ele tem reunido de pensamento para nos sugerir atos, programas e modos.
Outono, 2018
Caetano Veloso.
Prefácio do Livro: "Depois do colonialismo mental: repensar e reorganizar o Brasil" de Roberto Mangabeira Unger. Editora Autonomia Literária. 2018.