Carta sobre Rock’n’Raul (2000)

Caro fulano de tal,

Se você de fato admira e respeita Raul (eu o respeito e admiro), não faz sentido considerar minha canção “Rock’n’Raul” como uma agressão ou ofensa à sua memória. O que é que faz você pensar que ali eu demonstro desprezo pela música dele? Na verdade, falando na primeira pessoa do singular, eu concluo que “minha alegria, minha ironia é bem maior do que essa porcaria”, ou seja, que a força irônica e vital da música de Raul é maior do que os zés-manés e caetanos que comentam sua vontade de ser americano — e é maior do que a própria vontade de ser americano, um traço da personalidade de Raul que ele reiteradas vezes me revelou, como também a Rita Lee, e que, de resto, esteve sempre patente em sua obra. Um traço que é compartilhado com muitos outros brasileiros que, no entanto, não têm a coragem de dizê-lo assim com todas as letras. Além disso, a música diz: “e hoje olha os mano”, colocando o Raul e seu culto ao rock como precursor central do movimento do rap brasileiro, a meu ver uma das manifestações mais fortes da música popular do Brasil nesta década. O disco dos Racionais MCs é um dos mais sérios acontecimentos da música no Brasil de hoje, assim como o Krig-ha, Bandolo! foi um dos mais sérios acontecimentos da música no Brasil dos anos 70.

Fui sempre amigo de Raul, nunca tive nenhuma desavença pessoal, política ou musical com ele. Vi o último show dele, com Marcelo Nova, no Canecão e, no final, fui falar com ele, que me recebeu com carinho. Marcelo precisava diferenciar-se dos baianos tropicalistas para afirmar sua viagem roqueira. E eu sempre achei que ele estava certo. Os tropicalistas namoraram um tanto com o rock no princípio, mas depois do exílio voltaram muito para as tradições folclóricas locais, para o candomblé, para o baião e para o carnaval. Raul era do rock. Nova se identificava com ele, não com os “axé-babacas”, como ele inteligentemente chamava. Acho tudo isso rico e corajoso. Dentro desse espírito é que homenageei Raul com uma canção de gosto roqueiro (sobretudo na letra desabusada), franco, sem falso sentimentalismo, digno dele. Ele teria gostado. Não é uma atitude covarde. Sem ele aqui, há mais riscos de pessoas como você interpretarem mal o que ele teria entendido com clareza. Aliás, a resposta que ele daria eu próprio incluí na canção. É uma canção de amor e de destruição da mesquinha rivalidade que alguns críticos e alguns fãs querem criar entre rock e MPB. Talvez você pense que se trata de desprezo porque, como você diz, você despreza trabalhos como o meu e o de João Gilberto. Mas eu, definitivamente, não desprezo o de Raul. Ao contrário: desde seu primeiro disco solo, considero o que ele fez acima da maioria do que muitos “grandes nomes” da MPB fizeram. Eu inclusive. É isto que minha música diz.

Bem, caro fulano de tal, é isso. Espero encontrá-lo — assim como a qualquer fã de Raul — em Belo Horizonte, quando aparecer a oportunidade de uma apresentação minha aí, para aprofundarmos o diálogo.

Caetano Veloso.
Em algum dia do ano 2000.

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