Revisão muito incompleta do ano de 2018 (2018)
O ano que acaba foi difícil. Na sexta (21) à noite vi Roberto Carlos cantar "Como Dois e Dois" na TV. Fiquei surpreso e profundamente emocionado. Canção que escrevi no exílio e que agora soa tão violentamente atual. Senti Roberto com a mesma intensidade de quando ele lançou "Se Você Pensa", de quando ele cantou, em minha casa de Londres, "As Curvas da Estrada de Santos", de quando ele me mostrou "Debaixo dos Caracóis". A sintonia dele com nossa história profunda reafirma, volta e meia, o alerta que Bethânia me deu sobre a Jovem Guarda: "Eles têm vitalidade".
Entrei na cozinha para pegar um biscoito de arroz e vi na TV o título "Muito Romântico": era o especial natalino de Roberto. Parei, me perguntando, será que ele vai cantar essa minha música? Não sei se ele a cantou: havia convidados na sala e eu só vi uns cinco números (!). "Eu Te Proponho", "Se Você Pensa", Michel Teló, Alejandro Sanz. Principalmente ouvi Roberto frisar "Tudo vai mal, tudo/Tudo é igual quando eu canto e sou mudo". Isso fechou o ano para mim. A gente precisa saber quem a gente chama de rei.
Em 2018 Gil lançou "OK OK OK", em que ele surge como um menino recém-renascido. As canções de criança e os carinhos nos médicos que o ajudaram a curar-se vêm, além de emolduradas por outras de veia reflexiva (e por uma explosão de musicalidade no duelo/homenagem com Yamandu), tratadas pela sempre impressionante clareza de visão, pela luz, pelo toque de seu filho Bem (também parceiro em "Sereno").
Desde que Gil fez temporada voz-e-violões ao lado de Bem [Gil] que a precisão deste me exalta. Para mim, aquele show era a perfeição. E, depois, o "Gilberto Sambas" provou-se um dos momentos mais altos da nossa música popular das últimas décadas. Que delícia para Gil dever tanto dessa beleza a Bem. E que delícia para nós que Gil volte com tanta gilberteza. Sendo tão ele. Misterioso. Lunar. O lado da lua virado para a luz do Bem.
Este foi o ano em que o cantor português Salvador Sobral, em Lisboa, me perguntou se eu conhecia Tim Bernardes. Não. No Rio, ouvi Tim em casa de Paula Lavigne: meus filhos o conhecem. Fiquei encantado e intrigado. Semanas depois vi o show dele no Net-Rio. Uma maravilha de afinação, controle da dinâmica, refinamento, execução instrumental e liberdade na elegância do uso do palco e da luz —além das composições personalíssimas de caminhos fascinantemente desviantes.
Nelson Motta e eu éramos os únicos velhos na plateia. Tivemos certeza de que a música brasileira é forte sempre. Quem vê um show de Tim Bernardes não pode nem acompanhar o movimento mental de quem diz que nossa canção hoje não tem valor.
Elza Soares é uma deusa da canção lusófona desde que apareceu. Agora fez dois discos que honram nossa tradição e a levam para mais longe. Além de inspirar, com sua personalidade, o musical Elza, inovador e livre, belo espetáculo que engrandece nossa vida. Aquelas moças todas cantando e atuando como se cada uma fosse uma exceção, mas mostrando que são a nova regra. Com a turma de sampa que produziu seus discos, ela foi para o topo da revista online Pitchfork em 2017. Em 2018 veio com "Deus é Mulher". Deusa e mulher e preta e brasileira.
Tim participa lindamente do disco de Baco Exu do Blues, garoto que conheci na Bahia quando ele tinha 20 anos. Agora tem 22. E fez um disco de maduro acompanhamento da cena do rap anglófono –sem saber inglês. Um disco que marca uma virada no mundo do hip-hop brasileiro. Baco sabe ouvir o que os gringos fazem e cria o jeito certo para dizer o que ele próprio tem necessidade genuína de dizer. "Sofro racismo todas as horas de todos os dias", ele me disse em entrevista para a Mídia Ninja.
Suas letras citam Kanye West e Jay-Z, desavergonhadamente mostrando o fascínio pelo modelo ianque, com a saudável certeza de que a originalidade do que faz só aparecerá para muita gente daqui a um tempo. Diz: Mano Brown é para sempre. No imediato, quem já vivencia essa área do gosto aprova com entusiasmo sua empreitada. Para mim, é beleza pura: sou baiano praticante e, portanto, vejo Baiana System e Tiganá em Baco. Jesus é Blues.
Fiquei deslumbrado quando ouvi, já faz mais de ano, "De Ponta a Ponta É Tudo Praia Palma", o álbum sebastianista, transtropicalista e Thiago Amud. Com certo atraso, falei disso em entrevista a jornal. Uma noite, indo ao estúdio de Kassin, um rapaz que estava sentado no chão do Áudio Rebel com um amigo me chamou pelo nome: "Eu sou Thiago Amud". Fiquei feliz mas não tinha tempo de parar ali para uma conversa.
Este ano, antes de ele gravar seu "Cinema que o Sol Não Apaga" (que me traz de volta o tempo em que ia a vários cinemas no mesmo dia, saindo das salas muitas vezes com um filme que o sol da Bahia não conseguia ofuscar), nos encontramos e temos conversado. Ele escreve letras incrivelmente bonitas e melodias desconcertantes amparadas por orquestrações complexas e bem-compostas, escritas por ele mesmo (modernas, inteiradas do que tem acontecido com a música, mas principalmente sentidas fundo e muito pessoais).
O meu tropicalismo exulta diante de rebento longínquo no tempo tão capaz de dar espessura a muito do que tentei sugerir quando topei fazer canções. Outra vez, fico sem poder compartilhar do desalento de quem diz que nada de novo e bom acontece.
Ouço funk e pagode na FM O Dia toda tarde e toda noite –se saio de carro (e saio quase sempre). Para além de Ludmila e Anitta (e do maravilhoso clip de Nego do Borel, onde ele faz uma biba que dá um chupão num bofe –o que me lembrou das primeiras aparições de Mick Jagger a que assisti em Londres, em 1969, 70), há miríades de ideias anônimas encantadoras. E o Baile da Gaiola, com funks acelerados e inventivos. Há um em que um berimbau faz base para a batida umbanda-maculêlê que se tornou a marca. Tem muita coisa boa.
Risério dizia que o tropicalismo tinha visão antropológica da cultura brasileira. Ele próprio virou antropólogo. Os porta-vozes da direita atualmente triunfante odeiam a mirada antropológica da cultura. Eu não. Embora não ache que o tropicalismo seja ou tenha sido isso. Menos ainda "estetismo", que eu acho que é como o rapaz que segurou minha famosa cueca (a italiana Igiaba Sciego, num pequeno livro de fã sobre mim, atravessa páginas falando de cueca) prefere definir. Esse rapaz usa "cueca" como os ignorantes da obra de seu mestre usam "astrologia". Não dá. Então o conservadorismo é tão doido que nem num sonho contado em poesia de canção pode-se subverter a moral da fábula do rei nu?
Este foi o ano em que li (entre muitas outras coisas e sempre desorganizadamente) "Maquinação do Mundo", de Zé Miguel Wisnik; "O Elogio do Vira-Lata", de Eduardo Giannetti; "Ser Republicano no Brasil Colônia", de Heloisa Starling. E, com grande entusiasmo, "Economia do Conhecimento", de Roberto Mangabeira. Volta e meia volto aos citados, mas agora estou lendo, apaixonadamente, "Razão Para Crer", de David Smilde, um estudo sobre o crescimento das igrejas evangélicas na América Latina.
E dei uma olhada no "Jardim" de Olavo, que já tinha lido antes de as bacantes me desnudarem. Enquanto espero a saída do novo livro de filosofia de Antonio Cicero. Bom mesmo é como J.S. Mill atribui a energia histórica do "Ocidente Moderno" à instância profética que nos veio do judaísmo via Cristo. Reli muito das "Considerações Sobre o Governo Representativo" de Mill. Se tiver de escolher um lado, fico com Cicero, e não com Olavo. Mas Mangabeira me faz pensar mais.
Que o ano de 2019 seja bom e que possamos extrair da maluquice algo que nos faça mais capazes. Mudança houve. Passadas as eleições, torço para que muitos brasileiros encontrem o estímulo que buscavam e possam empreender. Fui e sou contra praticamente tudo o que os vitoriosos vêm dizendo há muito tempo. Mas que antagonistas ideológicos vençam é parte do jogo. E pode ser parte saudável. Nada de paralisar o andamento. Desistir do Brasil, não desisto. Gosto dele como Dostoiévski gostava da Rússia.
Mas, sendo o Brasil o que é e eu quem sou, com mais alegria. Com sonhos de tornarmo-nos caminho de luz para todos os povos, brecha aberta para passagem ao Quinto Império. Sim, Império. Sempre leio MD Magno, apesar de detestar o frou-frou francês pós-moderno –e o meu Quinto, de Pessoa Agostinho Vieira, é o quarto para ele, mas em meu rendado particular funciona o ponto, os bilros rolam, a linha corre.
Vi o General Heleno sugerir, com sorriso para Bial, que a revelação do Coaf sobre movimentações atípicas do assessor Queiroz é como que meio suspeita, dizendo-se ironicamente feliz pela eficácia do órgão. Ele não disse nada taxativo, apenas mostrou sorridente desconfiança do timing. E Lula está na cadeia. O general é simpático, até faz lembrar Ferreira Gullar —e sua presença no Haiti foi de orgulhar os brasileiros.
Bial falou no Mensalão. Mas o general fez cara de riso desconfiado, como se o Coaf só tivesse feito isso por tratar-se de Bolsonaro. O que pode levar um petista a achar confirmação de que toda a Lava Jato está cheia de lances e timings que só rolaram porque era Lula. E os jornalistas a reafirmarem que "os dois lados" são iguais. Que 2019 traga a superação desses embates simplistas. Que o Brasil esteja mesmo acima de tudo.
Caetano Veloso.
Folha de S.Paulo, 25 de dezembro de 2018.