Nossa Carolina em Londres 70 (1970)

Nelson Rodrigues disse que o povo brasileiro e a janela e o povo brasileiro na janela etc. etc. E Nelson Rodrigues é um poeta laureado, condecorado. Entretanto as janelas, mesmo no Brasil, têm servido para fins menos líricos do que aqueles aos quais ele se refere. Atenção para as janelas no alto. As feras do Saldanha. A Avenida Presidente Vargas. O bicho brasileiro na janela. Eu gostaria de contar ao Chico Buarque de Hollanda a história da Carolina, de dizer como a história da Carolina é parecida com a história da Gatinha Manhosa. Eu um dia pensei que a música brasileira estava num beco sem saída. Então eu saí da música brasileira e caí na vida, como acontece freqüentemente com as mocinhas sergipanas que vêm morar em Salvador. E aí eu me apaixonei pela gatinha manhosa e, algum tempo depois, com meu coração volúvel do signo de Leão, pela Carolina. Eu gostaria de contar, mas não tenho talento para narrar coisas tim-tim por tim tim. Oh God, please, don't let me be misunderstood. Devagar. Na terra de um dos seus sambas Chico Buarque contrapõe a lua e a televisão, a rua e a sala. Digamos que eu, vivendo na miséria cultural brasileira, estou nessa sala, vendo televisão. A minha irmã Carolina está na janela vendo a rua e o meu amigo Chico está na rua, vendo a lua. A minha namorada Carolina está no vídeo e o meu inimigo Chico está no vídeo. Eu estou na rua, a minha desconhecida Carolina está na janela e o meu amigo Chico está no vídeo. Permutações simples de três termos complexos. Nelson Rodrigues está no vídeo. Impermutável. O fato é que hoje eu já não penso que a música brasileira está num beco sem saída. Ao contrário, acho que só tem havido saídas. E nada mais. A tropicália tinha uma musa (uma senhora cujo nome eu não posso dizer) e uma antimusa (a Carolina). Talvez se eu dissesse o nome da musa alguém viesse a entender o significado da antimusa. Mas já há saídas demais. Não é possível nenhuma tropicália. Não procure entender nada. Chega de confusão. Sabe o que é que eu acho? – eu acho que você não precisa saber da piscina, nem da gasolina, nem da margarina, nem da Carolina. Eu gosto de Jorge Ben, de Roberto Carlos, de Chico Buarque de Hollanda, de Caymmi, de “Chuvas de verão”, de Nazarin, de diversas coisas. Don't think twice, it's all right, mo, I'm only bleeding. Podemos ser amigos, simplesmente; coisas do amor nunca mais. Eu bem avisei: vai acabar. De tudo lhe dei para aceitar. Mil versos cantei para agradar. E agora não sei como explicar. Lá fora, amor: eu vi em King's Road, no Picasso eu vi a inglesa deslumbrante. Ela veio e sentou na mesma mesa que eu e na minha frente. Ela nem me viu. Usou meu fósforo e, quando vagou outra mesa, ela se mudou para lá. Eu fiquei pequenininho cantando a Carolina bem baixinho como em brasileiro. Tenho certeza de que nem as crianças que cantaram esse samba nos programas de calouros da televisão souberam tão profundamente como eu a beleza da Carolina. Eu sou brasileiro, os meus olhos costumam se encher de água, eu sou humilde e miserável, estou na janela. Como na Alfama, em Santo Amaro, Évora, Cachoeira. Eu sou amável e terno, medroso. Eu sou lírico como Vinicius de Moraes, como Erasmo Carlos. Eu sou manhoso e dengoso. Não há salvação para mim. Nelson Rodrigues é um poeta laureado. Condecorado.

Caetano Veloso.

ALEGRIA, ALEGRIA (ORG. WALY SALOMÃO). RIO DE JANEIRO, PEDRA Q ROUCA, C. 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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