Para iluminar a cidade (1972)
estou escrevendo com muita pressa que é para não atrasar a saída deste disco: já é com um atraso de anos que se registra o trabalho de mautner. em 1963 néci me falou de deus da chuva e da morte. eu vivia lendo a revista senhor: vi uma entrevista esquisita desse cara que olhava os homens do alto de um edifício de são paulo e os via como formigas. um dia vi o livro e, assustado com a grossura do volume, não li. depois fiquei sabendo de kaos. ele era um escritor estranho de quem se falava, uma vez rogério me disse que esse escritor jorge mautner cantava muito engraçado bonito com um bandolim e que aprendera o alemão antes do português. soube que ele cantara na televisão uma canção que falava em hiroxima & bomba atômica: algumas pessoas da música popular brasileira estavam indignadas com a escolha dos temas. diziam: que temos nós brasileiros a ver com a bomba atômica? um dia nara tocou no assunto comigo, em tom de pergunta. eu não tive resposta porque não conhecia as tais canções, nara falava mais cheia de curiosidade do que de preconceito. ela parecia estar realmente querendo saber como encarar um fato tão diferente dentro da música brasileira, enquanto para outros (inclusive para mim mesmo, que nem sequer me esforcei para conhecer as tais composições) a própria estranheza deste fato aconselhava a ignorá-lo, depois veio-nos, veio-me, veio o tropicalismo, de vez em quando eu me lembrava desse nome jorge mautner e ficava curioso querendo saber, ele tinha ido embora para os estados unidos. os mutantes, que me mostraram tanta coisa, contaram-me que jorge era bacana tinha cada coisa louca, cantaram alguns trechos de canções escritas pelo jorge. não me lembro como eram esses pedaços de canções e creio que não me causaram nenhuma impressão definida, um dia tive vontade de perguntar a zé agripino.
acabou-se o tropicalismo, em londres,
apareceu jorge mautner com um guarda-chuva. gostei logo dele porque ele é uma
figura incrível e também porque ele foi logo me fazendo umas profecias muito
boas (e que felizmente deram certo). ri muito, ele cantou "o vampiro"
e essa canção me impressionou de um modo como só "charles anjo 45"
havia antes me impressionado, fiquei fã de jorge mautner. suas canções têm um
cheiro de liberdade criadora que eu só encontrara em jorge ben. na espanha ele
ficava falando em nietzsche e nos filósofos pré-socráticos, falando em apolo e
dionisius, lendo sartre nas praias da catalunha, a gente chamava ele de mestre.
mas principalmente ele cantava suas cantigas de chuva com o seu bandolim. ele
não tem nenhum medo do ridículo, ele parece com tudo. ele é completamente
diferente de tudo o que há na música brasileira, no showbiz brasileiro. ele
parece uma formiguinha com seu bandolim, um telefone. ele sabe imitar porta,
vaga-lume, liquidificador. só escreve cliché, com a originalidade de um
marciano, eu fiquei realmente assustado ao saber que "o vampiro" era
anterior a “alegria, alegria" e "domingo no parque". "olhar
bestial", que está neste LP, também, é preciso que também se saiba que,
mesmo agora, depois de tantos tropicalismos, não foi fácil colocar jorge no
disco: “ele é muito bom", diziam os chefes, “mas não há onde colocá-lo, o
público não vai saber como classificá-lo. e isso não vende". será?
Caetano Veloso.
Contracapa do disco Para iluminar
a cidade, de Jorge Mautner, 1972.