João, o calígrafo chinês (2008)

João Gilberto é toda a bossa nova mas é algo distinto dela. Está para além de todas as conquistas que a ela são justamente creditadas, embora nenhuma dessas conquistas possa ser sequer imaginada sem ele. Tom Jobim é o maior compositor daquele período -e suponho que o maior compositor de canção popular da história do Brasil- e, como toda individualidade artística, também está para além de qualquer movimento. Mas, quando Tom se expande para além da bossa nova, ele cria peças orquestrais semi-eruditas, longas, não raro impregnadas de temas rurais. Ou seja, ele se espalha para territórios estranhos à bossa nova. Com João acontece coisa bem diferente.

Tudo o que ele faz é um aprofundamento do gesto estético que fez com que, do estilo dele, a bossa nova nascesse. Cada abordagem nova de um velho samba de Herivelto ou de uma oitentista canção de Lobão nos leva a entender de novo a bossa nova, tudo o que ela fez e o que ela é -e tudo o que ela deixou de fazer e não pode ser. Estamos sempre mais fundamente no gesto inicial que a gerou mas que não se confunde com ela: o desenvolvimento estilístico de João Gilberto.

João é sideral e subterrâneo. As surpresas que ele incessantemente cria nas áreas do ritmo, do drama e dos acordes são a expressão necessária de uma sensibilidade propriamente artística. Ninguém em nossa música é comparável a ele. Quase ninguém o é em nossas artes todas. Zé Miguel Wisnik, em "Veneno Remédio", lembra-se de João num parêntese colado à observação da excepcionalidade dos casos Machado de Assis e Pelé. Não se pode fazer por menos. Sendo um sintonizador do Brasil com o cool do cool jazz, ele é o samba em pessoa. Todo o samba está nele. O samba total. Aquele que, criado e recriado por mineiros, baianos, gaúchos ou cearenses a partir de sua estilização carioca, crescera antes de se tornar uma expressão regional da cidade do Rio de Janeiro. (Dos anos 70 do século 20 para cá é que o samba se tornou uma espécie de reserva indígena carioca. Sem que isso representasse necessariamente um empobrecimento. Ao contrário.) Mas o samba total é que é a matéria-prima de João. Com os elementos do samba vividos desde dentro é que ele criou a batida analisada por Walter Garcia no livro "Bim Bom" e acendeu os faróis sobre o passado e sobre o futuro da música popular brasileira.

A arte de João é semelhante à do calígrafo chinês. Sua sutileza e sua carga de inteligência concentrada levam a canção a um céu além do céu, a um âmago além do fundo da terra. Um grave arranhado que não perde a nota e serve de percussão funciona como uma pincelada que muda o sentido da palavra desenhada. Seu canto transforma e revela cada canção de que se aproxima. Eu tinha 17 anos quando ouvi tudo isso pela primeira vez. Agora, meu filho de 16 me pede para que eu o assegure de que ele poderá ver João Gilberto cantar. Não pode haver nada que me faça mais feliz.

Caetano Veloso, 10 de junho de 2008. 
Folha de S.Paulo. 

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